terça-feira, 20 de julho de 2010

O trabalho de dormir!

Há os que são felizes na cama, dormem bem obrigado, e passam o dia lépidos e fagueiros. Há também os que bocejam a todo instante, como se uma noite inteira de sono fosse pouco. Há ainda, é claro, quem rola e rola entre os lençóis e mal dorme. Só não há quem viva sem dormir. Sem comer, pode-se agüentar duas semanas ou mais ainda, como conseguem os campeões da arte de jejuar. Sem pregar o olho, morre-se em sete dias — presumem os médicos.

Além de indispensável, o sono é certamente a atividade humana mais carregada de fascínio e mistério — a que desperta os mais primitivos temores, associados ao desconhecido, à desproteção e à morte. Ao mesmo tempo, é uma insubstituível fonte de prazer. Todos os vertebrados dormem. Os invertebrados, não; mas mesmo estes como os insetos, alternam períodos de ação e repouso. Apesar do muito que ainda falta saber sobre os mecanismos do sono, faz tempo que os cientistas acordaram para uma verdade básica o sono não é apenas um outro nome para repouso.

É um estado fisiológico especial — as ondas cerebrais se alteram em relação ao período de vigília os músculos chegam à condição atonia, ou seja, total inércia; os globos oculares se movimentam como se a pessoa acompanhasse algo com olhar, embora as pálpebras estejam fechadas.
Basicamente são esses — ondas cerebrais, estado muscular e movimento dos olhos — os parâmetros usados pelos cientistas para caracterizar clinicamente o sono. Mas existe uma série de outros indicadores, como taxas hormonais, ritmo da respiração, freqüência de batimentos cardíacos, que também mudam quando se dorme. Todas essas alterações devem fazer sentido para o organismo. Afinal, as pessoas pagam um alto preço quando ousam passar as 24 horas do dia em claro. Está provado que, sem a cota diária de sono, a capacidade de prestar atenção diminui drasticamente. Em compensação, fica-se mais agressivo e sensível. E, após mais de dois dias sem dormir, o corpo se entrega a dores, como se tivesse levado uma surra. Há 2 400 anos, Aristóteles já descrevia o sono como uma necessidade do organismo. O filósofo grego só errou ao atribuí-lo ao coração. Hoje se sabe que o sono é uma atividade cerebral. A palavra "atividade", aliás, vem a calhar, porque a rigor o cérebronunca descansa — nem no sono, como o cientista alemão Hans Berger provou pela primeira vez na década de 20. 

Com um aparelho de eletroencefalograma — desenvolvido a seu pedido pelo cunhado engenheiro —, Berger demonstrou que as ondas cerebrais jamais cessam. A partir daí, muitos cientistas voltaram-se ao desafio de entender o sono. A primeira descoberta importante, porém, só se deu na década de 50, quando o estudante americano, filho de poloneses, Eugene Aserinsky, cumprindo uma tarefa determinada por seu professor, o fisiologista Nathaniel Kleitman, foi espiar crianças adormecidas. Meticuloso, Aserinsky anotou tudo o que viu, inclusive que os olhos das crianças mexiam-se freneticamente durante alguns momentos, a intervalos de hora e meia. Kleitmam desconfiou da informação do aluno. Parecia notável demais para nunca ter sido percebido. Percebido, de fato, tinha sido. Mas ninguém Ihe dera importância. Sorte - da dupla Aserinsky - Kleitman. Pois o professor não só confirmou o fenômeno, como notou que justamente nesse estágio do sono, chamado a partir de então REM (Rapid Eye Movement, “movimento rápido do olho"), o eletroencefalograma era muito parecido com o de alguém em vigília. Mas, ao mesmo tempo, acordar uma pessoa em pleno estado REM é dificílimo, razão pela qual é também chamado sono paradoxal (Alguns pesquisadores preferem sono dessincronizado, devido ao traçado gráfico das ondas cerebrais.).

O sono tem quatro outros estágios, conhecidos como não-REM ou sincronizados. O estágio 1, que pode durar até sete minutos, corresponde à transição da vigília para o sono. "Nessa fase, pode-se despertar por qualquer coisa e ter noção do que acontece diz o neurologista RubensReimão chefe do Centro de Distúrbios do Sono, do Hospital Albert Einstein, São Paulo. Nos estágios 2 e 3, o sono vai-se aprofundando cada vez mais, diminui a freqüência das ondas cerebrais e os músculos se relaxam. Enfim, o estágio 4 — o último antes do REM — começa cerca de uma hora depois que se adormece. Parece ter o papel fundamental de restaurar certas funções do corpo — a locomotora, por exemplo. Ou seja, recupera-se aí o desgaste do dia anterior e prepara-se o desempenho do dia seguinte. "O estágio 4 parece estar ligado à atividade física", explica Reimão, "porque sua duração tende a aumentar após um dia de muita ginástica." Já o sono REM é maior após um dia de intensa atividade intelectual. Por isso, os cientistas acreditam que sua função seja a de restaurar o próprio cérebro. Este, aliás, aproveita o período REM para sintetizar neurotransmissores, substâncias que ajudam suas células a enviar os impulsos nervosos. O primeiro sono REM da noite não dura mais de três minutos. Então, volta-se aos estágios 4, 3 e 2, regressivamente, até o ciclo recomeçar. Em cada mudança de um estágio para outro — e não só nessas horas —, o corpo muda de posição. Pode-se despertar de manhã com a sensação de ter dormido "como uma pedra", mas isso não significa, na verdade, ausência de movimento. Um adulto normal mexe-se no sono dezoito vezes, em média. "O sono tem de três a seis ciclos", esclarece Reimão, que estuda o assunto há quase uma década e já trabalhou num dos maiores laboratórios de sono, nos Estados Unidos. "A cada volta, aumenta a proporção de sono REM, a ponto de, no último ciclo, durar cerca de uma hora." O que mais intriga os cientistas é o fato de os sonhos acontecerem justamente no estágio REM, embora também se possa sonhar em qualquer outro estágio. Em experiências, 95 por cento das pessoas acordadas nessa fase lembravam-se de um sonho; o mesmo só acontecia com uma em cada dez pessoas despertadas em outros períodos.

Outra característica do sono REM, a atonia ou inércia muscular, tem a ver, aparentemente, com o ato de sonhar. Suspeita-se que o cérebrobloqueia os comandos para os músculos — exceto os dos olhos, do coração e dos envolvidos na respiração — a fim de evitar que o corpo adormecido manifeste osonho em movimentos eventualmente perigosos para o sonhador e para quem estiver a seu lado. A agitação corporal durante um sonho indica uma ocorrência relativamente rara — o sonho em estágio não - REM. Cientistas franceses localizaram as células nervosas encarregadas de realizar o bloqueio muscular em pleno tronco cerebral — região que liga o cérebro à espinha. Ao extrair tais células de gatos, estes passaram a se movimentar no estágio REM como se estivessem brigando ou lambendo pratos invisíveis — enfim, expressavam com o corpo aquilo que sonhavam. Existe um sem - número de teorias e hipóteses para explicar o ponto de vista neurológico porque se sonha. Cientistas americanos chegaram a sugerir que, como no sonho REM océrebro está hiperestimulado ocorreriam ao acaso comunicações entre as células nervosas. Esse contato casual, como se as células esbarrassem sem querer entre si, produziria os sonhos. A psicanálise, de seu lado, rejeita a idéia de que sonho possa não ter função, embora não se pronuncie sobre seus mecanismo fisiológicos. Para Sigmund Freud, fundador da Psicanálise, todo sonho manifesta, na linguagem cifrada do inconsciente, um desejo e um temor. Tanta importância ele atribuía às mensagens contidas num sonho para autoconhecimento do indivíduo que comparava um sonho não interpretado a uma carta importante que se joga fora sem abrir. O fato é que todos sonham, embora nem sempre se consiga recordar os sonhos inteiros — algo que Freud explica como uma espécie de censura interna. Já que o REM é o sono dos sonhos, pode-se afirmar que os maiores sonhadores são os bebês: não só eles dormem 17 das 24 horas do dia com quase a metade desse sono é REM.

No adulto, que dorme cerca de sete horas, apenas um quarto do tempo de sono é reservado aos sonhos. A clássica recomendação de dormir sete a oito horas por noite não tem fundamento na Medicina. "A predisposição para dormir um número maior ou menor de horas é herdada", explica o médicoRubens Reimão. "Sete horas é apenas uma média estatística." O problema de quem só se satisfaz dormindo nove ou dez horas não é de saúde mas de imagem pública.Quanto mais uma sociedade valoriza o trabalho, a atividade, menos bem-vistos são os dorminhocos. Na França, até o século XVII, antes ainda, portanto, da Revolução Industrial, o verbo rever (sonhar) queria dizer algo ruim— vagabundear. Herança desse preconceito é a crença, comprovadamente falsa, de que pessoas "superiores" (gênios, por exemplo) dormem pouco. Napoleão Bonaparte — o exemplo mais citado nesse contexto, com suas escassas quatro horas de sono por noite — teria afirmado que "os homens precisam dormir seis horas; as mulheres, sete; os imbecis, oito", frase que a ciência se encarregaria de provar pouco inteligente. Pessoas idosas tendem a dormir menos e nem por isso são mais bem - dotadas. Mas não é só a duração média do sono que parece determinada geneticamente — a hora em que se vai para a cama também. A Cronobiologia — recente área do conhecimento que estuda a interação do tempo com os ritmos do organismo — divide as pessoas em três tipos, de acordo com seu sono: os indiferentes, os vespertinos e os matutinos. Os primeiros, a imensa maioria, são capazes de se habituar a dormir e acordar, em qualquer horário, o que não quer dizer que sejam capazes de adormecer a qualquer momento.

Os vespertinos — um em dez — têm os ciclos de produção de hormônios ligeiramente atrasados em relação aos demais; por isso, o pico de seu desempenho físico e mental ocorre à tarde e à noite. O vespertino não deixa de acordar cedo, se necessário; mas, se possível, ficará na cama até o meio - dia. "Finalmente, existem os matutinos como eu", define-se José Cipolla-Neto, neurofisiologista da Faculdade de Ciências Biomédicas da USP. "O matutino, que representa 15 por cento dos casos, acorda espontaneamente por volta das 6 da manhã, mas, em compensação, tende a ficar imprestável após as 23 horas." Essa classificação nada tem de comportamental, garante Cipolla: "Basta medir os hormônios de alguém para determinar seus picos de fadiga”. Até onde os pesquisadores, conseguem verificar essas coisas, todos os vertebrados são bimodais, que dizer, sentem sono duas vezes por dia. Para os humanos, um desses períodos ocorre entre 12 e 14 horas, tenha, ou não almoçado. De qualquer maneira a célebre siesta espanhola — o hábito de dormir após o almoço — teria aí seu fundamento orgânico. "O importante é que o ritmo biológico não muda", diz Cipolla. "Assim, pelo fato de ter evoluído como um animal diurno, o homem jamais conseguirá trocar a noite pelo dia sem prejuízos para saúde." Quem tem um trabalho noturno recupera de dia apenas 10 por cento do sono REM, mesmo que durma tanto quanto dormiria à noite. Resultado: tendência a problemas cardíacos, gástricos, sem falar no estresse emocional. De todo modo, os cientistas sabem menos do que gostariam sobre o que acontece com o organismo inteiro durante o sono. “O significado do sono ainda é uma incógnita, apesar da imensa quantidade de informação sobre suas manifestações e mecanismos", admite o fisiologista Cesar Timo-Iaría, da Faculdade de Medicina da USP, "seduzido há mais de trinta anos pelo assunto". O sistema nervoso, diz o professor sofre alterações funcionais muito tensas durante o sono, mas. ao contrário do que se imagina, algumas regiões do encéfalo tornam-se mais ativas nesse estado. Uma das teorias mais curiosas sugere que o sono é o estado mais importante do organismo: em vez de o sono servir para nos manter ativos na vigília, nesta o cérebro acordaria o restante do corpo apenas para a pessoa buscar alimento e sobreviver. A verdade — ao menos a verdade aceita até agora — é que vigília do sono não são estados opostos, mas complementares, maneiras diferentes de existir.